27 de ago. de 2012

Israel e Palestina em quadrinhos

Estamos quase em setembro, mas parece que eu ainda não voltei de viagem. Afinal, ao retornar, me comprometi a divulgar a minha experiência nos territórios ocupados, e, para isso, preciso ainda manter-me atualizado sobre o que acontece em Israel e na Palestina.

Assim é que, para algumas apresentações que encaminhamos nos últimos meses (obrigado IECLB, FAPA e UNISINOS :D), com o intuito de expor um pouco das violações aos Direitos Humanos que vimos por lá, acabei me deparando com uma obra em quadrinhos chamada Jerusalem: Chronicles from the Holy City, do cartunista canadense Guy Delisle (Editora Farrar Straus & Giro; preço médio: R$ 70,00).  

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Capa do livro – agora vocês sabem como ele se parece (Copyright 2012 by Guy Delisle)

É um livro grande, de 300 e tantas páginas, que cobre o período em que Guy viveu em Jerusalém Oriental, em companhia de sua esposa, funcionária da ONG Médicos sem Fronteiras, e de seus dois filhos pequenos. É uma leitura de fácil entendimento, mas nem por isso boba, sobre o dia-a-dia do conflito, visto pelos olhos de alguém que esteve em Israel entre os anos de 2008 e 2009 e teve a oportunidade inclusive de acompanhar a chamada operação Cast Lead.

Acabei me identificando muito com o livro. A dificuldade inicial com a língua, a adaptação ao universo de homens de roupa escura e mulheres vestidas dos pés à cabeça, o choque com o muro de Belém e a divisão de Hebron, o olhar admirado sobre Tel Aviv, os golfinhos de Eilat, a beleza (e tristezas) da fé religiosa, a neurose com a segurança, tudo que é capaz de marcar qualquer um que passa uma temporada por lá, aparece no traço e nos diálogos dos personagens (reais) da obra do canadense.
 
Não se trata de um livro “engajado”, no sentido de que ele eventualmente se posicione em favor de algum dos lados. Pelo contrário, o grande mérito de Delisle é justamente conseguir captar as nuances do conflito, desfazendo dicotomias e ilustrando o que há de mais positivo, negativo e pitoresco naquilo que observa, sem, contudo, fugir da sua (quase) obrigação de retratar a ocupação com ela realmente é: burocrática, desproporcional e desumanizadora.
 
Seus traços são simples, mas sensíveis. Embora talvez melhor aproveitados por aqueles que já tiveram a oportunidade de viver em Israel e nos Territórios Ocupados, principalmente em razão das lembranças que ele desperta - quatro ou cinco quadrinhos mostram o trabalho do Conselho Mundial de Igrejas junto a um dos checkpoints de Ramallah! –, é um livro que indico também para aqueles que têm interesse em se inteirar sobre o assunto, a partir do ponto de vista de um estrangeiro que não tinha qualquer vínculo prévio com as pessoas e com os problemas daquela parte do globo – mas que, como todo mundo que passa por uma experiência dessas, acabou se conectando a tudo que viu.

8 de jul. de 2012

Sebastiya

Devia um post sobre um dos meus lugares favoritos na Palestina. E aproveito também para falar sobre as dificuldades de se preservar o patrimônio histórico-cultural em meio à ocupação militar israelense.

 

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Tentando derrubar o que restou de Sebastiya (Foto: María Isabel Fiallo Flor)

Sebastiya é um vilarejo situado ao norte da Cisjordânia, nas proximidades de Nablus, que guarda um dos mais completos conjuntos arqueológicos da região do Levante. Ali estão localizados os restos de uma antiga cidade romana chamada Sebaste, além de edifícios do tempo dos bizantinos e outras culturas. Afora isso, ali estaria localizada a tumba de São João Batista, o responsável por nada mais, nada menos, batizar Jesus Cristo. Ponto de peregrinação importante, principalmente para cristãos ortodoxos, lá há inclusive uma uma catedral imensa, erguida pelos cruzados, catedral essa que, depois da conquista árabe, foi convertida em mesquita.

Sebastiya certamente poderia competir em importância com famosos sítios arqueológicos israelenses abertos à visitação, como Caesarea. Digo poderia porque, bem, Sebastiya está na Palestina, não em Israel, e isso significa uma série de problemas.

A começar que é praticamente impossível saber qualquer coisa dela por vias normais. Não há pacotes de turismo, não tem programa de TV, nunca teve filmagem hollywodiana (como Petra, na Jordânia) e os recursos para propagandeá-la são tão escassos quanto água no deserto. Eu só vim a saber de Sebastiya porque, como quase-historiador, tenho faro pra identificar nomes de cidades com potencial pra esconderem coisas divertidas. E, de fato, Sebastiya esconde muita coisa “velha” que só gente como eu vê alguma graça.

Além disso, Sebastiya sofre com a precariedade. A vila, conforme os Acordos de Oslo, está parte situada no que se considera Área B, onde a ANP só tem controle sobre os assuntos civis, e em parte no que se considera Área C, onde os assuntos civis e militares ficam “aos cuidados” das forças de ocupação. Isso significa que a Autoridade Palestina não tem total controle nem sequer sobre a totalidade do sítio arqueológico. Em outras palavras, embora em território palestino, uma seção inteira das ruínas na verdade depende da boa vontade de Israel pra ser preservada. E vocês devem imaginar o quanto isso é complicado, especialmente quando logo ali do lado há uma colônia ilegalmente instalada em propriedade de palestinos. Aliás, cooperação nesse caso é algo que não parece passar pela cabeça de ninguém, ainda mais depois que Israel ocupou o sítio arqueológico de Herodium, em plena Cisjordânia, a poucos quilômetros de Belém, fazendo dele um dos seus hot spots turísticos…

Sebastiya infelizmente não é a exceção nos territórios ocupados. Muitos locais com enorme potencial turístico sofrem com falta de conservação e com o desleixo tanto da Autoridade Palestina quanto das forças de ocupação israelense.  A esperança é que as coisas mudem em razão do ingresso da Palestina na UNESCO. A primeira consequência positiva desse ingresso - que sofreu a oposição dos EUA e de Israel – foi a inserção da Igreja da Natividade, em Belém, no rol de bens considerados como Patrimônio Histórico e Cultural da Humanidade. O valor simbólico da medida é evidente, porque assegura que a Palestina, assim como qualquer outro Estado no mundo, faz jus a ter os seus marcos histórico-culturais reconhecidos mundialmente. Sim, pois é, não é só Israel que tem direito a ter a sua história preservada.

Talvez chegue um dia em que Sebastiya usufrua do mesmo benefício concedido à Igreja da Natividade. E, inshallah, não haverá mais ocupação…

 

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Mesquita + Catedral Templária + Lua (Foto: Érico Loyola)

29 de mai. de 2012

O dia em que os turcos foram derrotados às portas de Viena…

Em 1683 as tropas otomanas foram derrotadas pela Santa Liga nos arredores de Viena. Esse combate, que colocou de um lado os exércitos do Sultanato e do outro uma aliança formada por reinos cristãos germânicos, foi fundamental para impedir a expansão do Império Turco na Europa. Aliás, muito mais do que isso, na mentalidade da época,  a vitória dos europeus significou a derrota dos “infiéis” muçulmanos pelas espadas “cristãs”.

Esse momento foi tão significativo que no interior da Basílica de São Pedro, no Vaticano, foi construído um monumento a Inocêncio XI, o Papa que ajudou a mobilizar os exércitos contra os “inimigos” da Cristandade. E, bem, foi um tanto quanto curioso ver aquela estátua depois de ter passado três meses vivendo entre palestinos muçulmanos. Afinal, durante meu período por lá não vi nada que indicasse o mínimo conflito entre Islã e Cristianismo; visitar a Igreja da Natividade em Belém, por exemplo, é mais fácil do que comprar falafel, e Jesus Cristo é um dos profetas mais respeitados entre os seguidores de Maomé.

De alguma forma, no entanto, a mentalidade “Batalha de Viena” não morreu. Sempre somos nós contra eles, e eles contra a gente, numa batalha cultural pela primazia do mundo. Basta pensar nas Cruzadas, ou mais recentemente nos ataques às Torres Gêmeas em Nova Iórque:  em ambas as situações embarcamos numa generalização inexplicável, como se tudo se resumisse à luta entre modernos e democráticos cristãos, filhos do Ocidente, contra atrasados e autoritários muçulmanos, vassalos do Oriente.

Realmente, nada pode ser pior do que uma generalização abobada, ainda mais quanto essa se presta a justificar uma suposta superioridade de uma certa “cultura” sobre outra. Interações ocorreram e ocorrem ao longo da História, colocando um grupo em contato com o outro, num processo que, por meio de contribuições mútuas, desenvolve e por assim dizer modifica a forma corrente de vermos/pensarmos o mundo. Os gregos, por exemplo, aprenderam muito com as culturas mesopotâmicas (corriqueiramente consideradas “orientais”), ao passo que os árabes, posteriormente, se aproveitaram muito da filosofia desenvolvida pelos mesmos gregos. A ideia do Ocidente como espaço da democracia também pode ser colocado em xeque quando pensamos nos diferentes tratamentos dispensados a árabes e judeus residentes em território israelense.

 

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Mesquita decorando um palácio do Rei Ludwig II na Bavária

Alguns podem se vangloriar que o cristianismo bloqueou a influência árabe às portas de Viena. Hoje, no entanto, elas se fazem mais do que nunca presentes na Europa, seja por meio de lojas que vendem kebabs ou por via de museus que expõem obras tomadas pelos exércitos imperiais no Oriente Próximo e no norte da África. Generalizamos como inferior, mas ao mesmo tempo é inegável que admiramos a riqueza das mesquitas e nos encantamos com a riqueza da cultura que vem para lá do Bósforo.

A estátua de Inocêncio XI pode estar na Basílica de São Pedro celebrando o que quer que esteja, mas a ideia de autossuficiência e superioridade que ela passa é completamente absurda.  

26 de abr. de 2012

Closing Time

Tudo começou três meses atrás. Não sabia direito o que estava fazendo e a ansiedade de vir pra um lugar desconhecido, no meio de um dos piores conflitos do mundo, era a tônica do meu dia-a-dia. Sair do emprego, repensar a vida, reprogramar-se, seguir um sonho quase infantil de prestar ajuda numa terra distante, experimentando na prática tudo que aprendi a gostar nesses meus 27 anos. Quando daqui a alguns dias (inshallah!) partir no meu voo rumo a Roma vou sentir muita tristeza por tudo que vou deixar para trás e, ao mesmo tempo, uma felicidade sem fim por tudo que consegui fazer.  

Nos últimos dias venho tentando descobrir no tempo alguns detalhes que de alguma maneira podem ter me levado a vir pra cá. Copiar bandeiras de países e desenhar continentes imaginários devem ter sido os primeiros indícios do que viria acontecer. Depois disso apareceu um amor bizarro por montar historinhas imaginárias violentas, com direito a sonoplastia de explosões e tudo. Mais adiante, no colégio, veio o prazer em decorar nomes de pedras, ler qualquer coisa relacionada à História (fosse ela a História do Bairro Sarandi ou do Império Austro-Húngaro), discutir política e religião. Em seguida, no curso de Direito, me animei com discussões não tão pseudo-filosóficas sobre Relações Internacionais, e, depois, o meu trabalho, onde aprendi a gostar da Justiça pela simples e pura Justiça. Finalmente, o curso de História, a 8ª maravilha do mundo, com toda sua humanidade.

E aqui estou, quase no fim de três meses (bem) vividos entre Palestina e Israel. A gente acha que uma viagem dessas é capaz de mudar a cabeça de qualquer pessoa, mas, no meu caso, ela serviu mesmo para mostrar que o menino asmático que desenhava bandeirinhas é só a versão 0.1 do que eu sou hoje. Quer dizer, a pessoa que sou hoje ainda é, de alguma forma, a pessoinha que eu eu era tempos atrás, e o que eu vi e experimentei nesse período é só uma consequência de tudo que cultivei ao longo dessa minha vida. E, posso dizer, acho que estou satisfeito com o que fiz até agora. Realmente, não tem nada mais importante pra mim do que a relação entre pessoas e povos e todos os aspectos políticos, sociais e culturais que isso engedra.

A partir dessa correlação “bandeirinhas – política internacional” posso dizer que hoje me sinto mais humano e consciente de que sofro e me preocupo muito mais com o sofrimento dos outros. Mas e todos os outros que não se preocupam? Pois é, esses são os piores inimigos de um idealista e o maior obstáculo para a consolidação da Justiça.

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Muro em Belém. Nothing lasts forever.

Um exemplo prático disso: dia desses fui cruzar o Checkpoint 300, em Belém. Era domingo e centenas de pessoas queriam visitar Jerusalém. Só havia um detector de metais e uma pessoa para checar os documentos. Desse modo, tudo funcionava a passo de tartaruga e eu demorei exatamente uma hora para passar pro outro lado (= andar 50 metros). Completamente frustrado com a situação resolvi falar com um soldado pra saber se ele não poderia acionar alguém para colocar mais um detector de metais, ou pelo menos deixar mais gente entrar ao mesmo tempo pra checagem. A resposta foi, no mínimo, engraçada: “não, não tem nada que se possa fazer, o problema é que tem muita gente”. 

Certo, o problema é “gente demais”, então. Provavelmente esse soldado não teve tempo suficiente para olhar para si mesmo e ver que a única coisa que mais importa nesse mundo é “a gente” e tudo que gira em torno dela. No dia em que ele entender que faz parte dessa “gente”, deixando de ter medo de amar as pessoas, talvez as coisas comecem a mudar. Muros, checkpoints, permissões, colônias, apartheid, tudo isso vai desaparecer. 

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Definitivamente!

17 de abr. de 2012

Jubara

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Bem-vindo a Jbarah, Jbara ou Jubara! (Foto: Érico Loyola)

A vila de Jubara, além de poder ser soletrada de diversas formas,  é um microcosmo dos males ocasionados pelo muro que separa Israel da Palestina. Por motivos que até hoje ninguém entende seus 300 habitantes, todos com identidad palestina, foram postos no lado israelense do muro, muito embora os mapas pré-1967 deixem mais do que claro que ela deveria pertencer ao território palestino. Em razão disso, os moradores se organizaram, contrataram um advogado e ganharam na Suprema Corte o direito de ver a linha do muro redesenhada, de forma que as terras pertencentes aos moradores de Jubara sejam incorporadas à Cisjordânia. Bem, essa decisão foi tomada em 2004. Só agora, no entanto, as máquinas começaram a trabalhar.

Do lugar onde estamos sentados, à sombra de uma árvore, eu, minha colega e Ahmad, um professor aposentado, conseguimos observar o serpentear da cerca de arame farpado (lá o muro é na verdade uma cerca de arame farpado – o que não significa que seja uma visão agradável). Pertinho dali ainda há um portão monitorado 24 horas pelo exército, cujo acesso somente é permitido a moradores locais; isso significa que se alguém quiser visitar Ahmad vindo da Palestina terá antes que conseguir uma permissão do governo israelense. Com o novo desenho esse exílio acabará, mas, como tudo o que acontece por essas bandas, o que vem pro bem da situação palestina resulta numa dor de cabeça tremenda.

 

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O Checkpoint que hoje separa Jubara do resto da Palestina – tiramos a foto longe para que os soldados não vissem :/ (Foto: Érico Loyola)

A começar pela própria demora no início das obras. Foram-se 8 anos até que ela finalmente começasse, isso desanima qualquer um que pense em agir “pacificamente” pra conseguir alguma mudança a partir das autoridades israelenses. Além disso, o próprio princípio da coisa está errado: por que alguém precisa entrar na Justiça pra ter reconhecido que as fronteiras palestinas vão mais além de onde hoje está a barreira que separa os dois países? Por que o governo de Israel não fez o favor de observar a decisão da Corte Internacional de Justiça sobre a ilegalidade da construção do muro em território palestino, que resultou, na prática, na indevida incorporação de território?

Além disso, a vitória na Justiça não foi total. Apesar de redesenhada, algumas terras pertencentes a palestinos ficarão do lado israelense da barreira, o que resultará na abertura de uma Agricultural Gate. Ou seja, várias pessoas terão que solicitar uma permissão por parte dos israelenses para acessar em datas específicas terras que lhes pertencem, com registro e tudo. Permissão semelhante deverá ser solicitada caso alguém deseje visitar algum parente que esteja morando em qualquer cidade israelense, como Taybe. Em outras palavras, em razão da nova “fronteira”, Jubara perderá a continuidade territorial que hoje desfruta com várias cidades, que hoje podem ser facilmente acessadas, ainda que “ilegalmente”, em razão do fato de simplesmente estar pra lá da cerca de arame farpado. Quer dizer, o exílio termina de um lado, mas começa do outro.

Finalmente, vem o risco das demolições. Conforme os Acordos de Oslo, parte da vila de Jubara está hoje no que é considerado Área B, e parte no que é considerado Área C, o que significa que muitas das casas que foram edificadas desde que a barreira que separa Israel da Palestina foi construída correm risco iminente de demolição. Quatro famílias, aliás, já receberam ordens para parar a construção de suas residências e uma escola primária que só existe em razão de doações da União Europeia pode eventualmente também ser posta abaixo, assim como diversas outras edificações em Área C.

Perto de todos esses contras, parece que não há motivo algum pra desejar estar do lado palestino. Burocracia e incerteza parece ser tudo que espera Ahmad e todos os habitantes de Jubara. No entanto, o próprio Ahmad é um exemplo de que a causa de um Estado palestino é mais forte do que problemas individuais: com o novo desenho do muro, ele perderá o fácil acesso que hoje tem para visitar diversos de seus parentes que vivem em Taybe, e um de seus filhos provavelmente não mais poderá seguir trabalhando na mesma cidade. Ele tem certeza de que a luta exige sacrifícios, mas que esses valerão a pena; o que realmente importa, segundo Ahmad, é que “se recupere as terras palestinas, com os israelenses vivendo do lado deles, e nós vivendo no nosso”.

 

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Nas terras de Ahmad (Foto: Érico Loyola)

Realmente, todos esperamos que isso seja possível um dia.

12 de abr. de 2012

Sandwich Falafel

Falafel é um bolinho frito feito à base de grão-de-bico. É geralmente servido dentro de um pãozinho árabe, acompanhado de dezenas de temperos, verduras e legumes, como pepino, tomate, rabanete e outras coisas. Para os mais ocidentalizados até batata-frita é uma possibilidade dentro da composição. Cada palestino tem seu falafelman favorito e há uma disputa intensa entre eles para definir quem faz o melhor bolinho gorduroso da Cisjordânia.

No entanto, um cartão postal do lado de lá do muro anuncia, orgulhosamente, que o falafel também é petisco oficial dos israelenses!

 

k582w É e também pode não ser verdade (Photo: Nisim Lev, published by Palphot Ltd)

Admito que fiquei bem surpreso na primeira vez que vi esse cartão postal. Sempre imaginei o falafel como um daqueles produtos que a gente associa com árabes de turbante e camelos no deserto. É como se Marrocos, Egito, Arábia Saudita, enfim, o assim chamado “mundo árabe”, só seguisse existindo à base de falafel, e ninguém mais pudesse “tirar” isso deles. Israel tomando para si a “nacionalidade” do falafel seria o mesmo que a Alemanha dizendo que é o país do samba.

Contudo, depois de algumas unidades de falafel ingeridas em Haifa, Akka e Tel Aviv, me dei conta de que o falafel também é parte da cultura israelense na medida em que muito dessa só existe graças à influência árabe. Afinal, os judeus mizrahim, provenientes do Oriente Médio e do Norte da África, devem ter comido muito falafel antes de emigrarem para o moderno Estado de Israel. Não só na culinária, mas também a música que embala as noitadas israelenses é muito parecida com as melodias tocadas do lado de cá do muro; o hebraico, também, está cheio de expressões árabes; igualmente, fenotípica e estilisticamente falando, não há diferença física óbvia entre um(a) israelense mizrahim e um(a) palestino(a), exceto talvez pelo véu (que nem todas as muçulmanas usam) ou por um pouco mais de pudor na escolha das roupas por parte dos últimos.

Isso me faz pensar em quanto nos auto-engamos ao tentar encontrar estereótipos, especialmente quanto à nacionalidade de alguma coisa. Por algum motivo imaginamos os judeus sempre em oposição aos árabes, e vice-versa. E esse antagonismo é repetido na mídia, nas escolas públicas em Israel e na Palestina, na constituição de colônias exclusivamente judaicas, na proibição de visitas por parte de residentes da Cisjordânia a Israel e na criminalização de visitas de israelenses a zonas definidas como “Área A” pelos acordos de Oslo. Dizer que o falafel é o petisco nacional israelense, assim como dizer que ele é um produto exclusivamente palestino, é só mais uma dessas loucuras desse processo de criação de uma identidade que recusa a existência do outro.

Afinal, Israel parece estar o tempo todo negando a contribuição árabe. Mas, no fim, não consegue escapar dela nem por um segundo. Aquele papo de que é a porta do Ocidente no Oriente, de que há um choque de civilizações, que o Estado está cercado de inimigos árabes, que é a única democracia do Oriente Médio, tudo isso cai por terra quando vemos que Israel bebe da mesma cultura em que os palestinos estão inseridos. Comem falafel, shoarma, gostam das mesmas coisas, não entendem nada de futebol, tem políticos corruptos… daí pra que tanto antagonismo?

DSC02653 Também pode ser ou não verdade (mesmo cartão postal, mas com uma visão alternativa que rola por aí)

 

Óbvio que a Guerra de 1948, que opôs um Estado “judeu” contra diversos Estados “árabes”, foi um evento extremamente traumático. No entanto, passado tanto tempo, ao invés de construir muros e checkpoints, seria melhor explorar essa identidade comum que o Oriente Médio oferece a israelenses e palestinos. Quem sabe seria possível a convivência pacífica entre dois Estados ou mesmo um só Estado sob uma bandeira comum se ambas as partes reconhecessem suas semelhanças e diferenças e se aceitassem mesmo assim. E, como testemunha desse conflito, posso dizer que falta vontade de Israel e sobra fraqueza por parte da Autoridade Palestina para seguir em frente num diálogo construtivo.

6 de abr. de 2012

Páscoa

Queria falar sobre a Semana Santa estando na Terra Santa. Afinal, esses dias talvez representem o que há de mais importante para os cristãos, que é a história da morte e ressurreição de Cristo. Além do mais, como luterano, tenho quase que um dever moral de escrever alguma coisa sobre essa período que começa com sofrimento e termina em júbilo.

No entanto, redijo essas linhas sob o efeito do que vi na última semana: gás lacrimogênio e pedras sendo arremessadas de parte a parte, fazendeiros sendo tratados como bandidos e condições desumanas em checkpoints. Além disso, quase que como uma cereja no bolo, descobri faz pouco que Israel decretou o fechamento da Cisjordânia até sábado de noite, de modo que só portadores de passaporte estrangeiro e residentes com “Permissão de Páscoa” poderão se dirigir a Jerusalém para as celebrações da morte e renascimento de Jesus Cristo durante esses dias. No caminho provavelmente encontrarão o terminal de Qalandyia ou outros bizarrices geradas pela presença militar israelense em território palestino.

 

DSC02380 Manifestante atingido por gás lacrimogênio na vila de Kafr Qaddum (Foto: Érico Loyola)

Com tudo isso acabo me perguntando se de fato há espaço para santos entre tantos checkpoints. A dor é tanta, as arbitrariedades são tantas, que é muito fácil simplesmente deixar-se levar pela situação e desistir. É super comum ouvirmos palestinos perguntando se podemos ajudá-los a se mudar para fora daqui, porque a situação é intolerável. Por sua vez, especificamente da parte dos cristãos palestinos, escutamos muito que eles se sentem abandonados por seus irmãos do lado de lá do muro.

No entanto, pode parecer absurdo, mas acho que a luta não é vã e que resistir à opressão, e vencê-la, conquistando uma paz justa, ainda é uma possibilidade. Para cada metro de arame farpado há uma ovelha alheia a tudo; para cada soldado há uma criança perguntando hooow areee yoooou; para cada bomba de gás lacrimogênio há dezenas de amendoeiras; para cada refugiado há uma xícara de chá sendo oferecida – atrás de cada momento de sofrimento há uma demonstração genuína de Fé, de Esperança e, acima de tudo, de Amor.

Aliás, Amor, é isso que precisamos, é isso que se deve buscar em todos os momentos. É isso que faz ressuscitar a esperança de milhares de pessoas, de ambos os lados, sejam elas cristãs, muçulmanas ou judias, pela causa da paz, que só é possível quando se tem Amor pelo que é humano. É como diz o sempre repetido I Coríntios 13:1: “Ainda que eu falasse a língua dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine”. Sem amor, sem esse escudo que sustenta qualquer qualquer luta, seria definitivamente impossível suportar a vida sob ocupação.

 

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Pomba no torreão da Herod’s Gate, em Jerusalém, esperando o fim do conflito. (Foto: Érico Loyola)

2 de abr. de 2012

Área C

Lá estou eu sentado numa tenda providenciada pela Cruz Vermelha, que hoje serve de abrigo temporário para uma família de Fasayil, um vilarejo no Vale do Rio Jordão. A família em questão, composta por 11 pessoas, vivia em uma casa fazia 10 anos. Agora, porque a tal casa estava no que pelos Acordos de Oslo é considerado Área C, foi ela posta abaixo.

Pouco restou. A máquina de lavar da família, aliás, totalmente inútil nessas circunstâncias, ilustra a desumanidade da ocupação. É tudo muito surreal, para dizer o mínimo.

 

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(Foto: Érico Loyola)

A Palestina pode ser considerada um arquipélago. Os tais Acordos de Oslo, que deveriam ser temporários e destinados a permitir uma gradual transferência de poder à Autoridade Nacional Palestina (ANP), retalharam a integridade territorial do país, justificando sua divisão em três diferentes áreas: “A”, onde a ANP tem controle sobre questões civis e militares; “B”, onde os palestinos são senhores tão-somente dos seus assuntos civis, e “C”, onde os israelenses têm total controle, civil e militar.

São nas áreas consideradas “C”, que equivalem a 62% da Cisjordânia, que as demolições geralmente acontecem. As forças militares israelenses, pelos motivos mais absurdos possíveis (geralmente relacionadas a questões de segurança ou de origem burocrática), emitem uma ordem e depois de algum tempo, que pode durar dias ou mesmo anos, chegam a sua casa, poço artesiano, canteirinho, horta, ou o que seja, e colocam tudo abaixo. A coisa é tão automática que até funcionários fluentes em árabe são levados ao local para auxiliar na retirada dos móveis que estão na residência, uma vez que as famílias, obviamente, resistem e se recusam a cooperar. E se há alguma forma de compensação? Não, nenhuma. É puro e simples confisco.

Por sua vez, as colônias florescem na área C. A vila de Fayasil, em específico, está cercada pelas colônias de Pezaiel e Tomer, que, com um uso absurdo de recursos hídricos (um colono consome quatro vezes mais água que um agricultor palestino), enriquecem com uma abundante produção de cítricos e hortaliças, num contraste absurdo com a aridez do Vale do Rio Jordão.

 

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(Foto: Érico Loyola)

Aproveitando essa circunstância, pergunto a uma dos desalojados se ele trabalha nas colônias.

A resposta é positiva - “sim, trabalho, mas fazer o quê, preciso trabalhar”.

Preciso tomar ar antes de seguir em frente. Que tal, trabalhar para um colono e quem sabe ver o filho deste conduzindo a demolição do lugar onde você morou por dez anos? Fico pensando, que coexistência é possível num lugar como esse, em que a mão que dá o sustento é a mesma que põe abaixo o que lhe dá dignidade? Eu não tenho nenhuma resposta, pois o que acontece aqui foge completamente a tudo que é humanamente aceitável.

Mesmo do ponto de vista legal, aliás, a situação é absurda: o artigo 53 da IV Convenção de Geneva dispõe claramente que a demolição de qualquer bem pertencente à população objeto de ocupação é proibida, salvo seja absolutamente necessária do ponto de vista militar. Bem, qual é o interesse militar em destruir a casa de uma família de agricultores que inclusive trabalha nas terras dos colonos vizinhos? Nenhum. Por outro lado, que autoridade teria Israel para dispor de supostas posturas residenciais em território palestino? Nenhuma ao quadrado.

O lado positivo é que essa família, aconteça o que acontecer, vai continuar morando no Vale do Rio Jordão. Graças ao trabalho da Jordan Valley Solidarity Movement uma nova casa será construída com tijolos de barro. A família vai permanecer vivendo em Fasayil apesar de todo o sofrimento. Aliás, viver, simplesmente viver onde se está, talvez seja a forma mais bonita de resistência que já vi.

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(Foto: Érico Loyola)

22 de mar. de 2012

Yanoun

Yanoun, no norte da Cisjordânia, a poucos quilômetros do Vale do Rio Jordão. Esse lugarejo de cerca de 70 habitantes, dividido entre Lower e Upper Yanoun, que vive basicamente da agricultura, é um marco da resistência palestina.

DSC01752 Upper Yanoun, a metrópole

Praticamente toda semana colonos dos assentamentos vizinhos fazem “passeios” pela vila e arredores com o intuito de intimidar seus moradores. E, de fato, em 2002 esse vilarejo ficou completamente deserto depois de uma violenta ação dos colonos, que cortaram centenas de oliveiras e agrediram moradores. No entanto, graças a pronta resposta de ativistas, que estabeleceram uma espécie de posto de observação permanente no local, puderam os residentes originais retornar a Yanoun.

 

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Bem, talvez uma das coisas mais absurdas das tantas coisas desse conflito absurdo seja justamente a presença de assentamentos judaicos em território que deveria pertencer à Palestina e a violência dos colonos. Temos essa imagem de que os árabes são terroristas barbudos e perigosos, mas a verdade é que um colono fundamentalista é tanto ou mais agressivo, principalmente se considerado que muitas vezes agem sob o olhar complacente do exército (que, no entanto, também pode vir a ser o alvo!). Aliás, nos últimos anos, segundo a ONU, tem-se observado um aumento substancial no número de ações violentas por parte dos assentados contra a população local, como uma espécie de resposta a qualquer mínima sombra de tentativa de distensão (sim, o minimalismo é permitido nesse caso).

E Yanoun, no caso, deu o azar tremendo de ficar cercada por assentamentos, todos obviamente posteriores ao estabelecimento da vila. E, o que é pior, fica do lado da colônia de Itamar, considerada uma das mais violentas, também segundo dados da ONU. Daqui da sala, aliás, consigo enxergar as luzes do outpost de Itamar (não confundir com este Itamar), que ficam permanentemente acesas para monitorar as vilas vizinhas.

Mas, claro, a questão não é simplesmente expulsar 70 fazendeiros armados com 300 ovelhas, mas sim tomar suas terras e permitir aos colonos acessar mais facilmente o Vale do Rio Jordão, de importância fundamental na estratégia israelense de controle de recursos hídricos e de cerco à população palestina. Novamente bato na tecla da segurança: por mais que digam que é isso que importa, a verdade é que ocupação israelense está MUITO longe de se limitar exclusivamente a esse tema – o que ocorre, aqui, é um projeto calculado de expansão, que busca gradualmente sufocar as comunidades locais, fazendo-as desaparecer ou ficarem enclausuradas.

Como já tinha sido observado pelo EA Eduardo Minossi, só vai haver paz mesmo quando os assentamentos forem retirados dos territórios palestinos. Isso, no entanto, parece ser um sonho distante. A mentalidade corrente de um assentado é, em geral, de que ele tem a missão divina de ocupar essas terras e expulsar os residentes. E, bem, vai tentar conversar com um colono que ele tem que procurar outro lugar pra morar…

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Esse post foi escrito num momento em que estava de bom humor. Mas uma viagem ao Vale do Rio Jordão (rio?!) é mais do que suficiente pra acabar com ele…

18 de mar. de 2012

Haifa

Haifa fica no norte de Israel, no entorno de um dos portos mais movimentados da região do Levante. Ela espalha-se, vibrante e imponente, por uma baía belíssima até encontrar as primeiras escarpas dos montes esverdeados que abrigam Nazaré. Nesse ambiente tão amistoso é que, conforme propagandeado por  Israel, teria surgido um exemplo de boa convivência entre judeus, muçulmanos, cristãos e outros credos religiosos, como os Baha’i.

E, de fato, talvez Haifa tenha sido o lugar mais “multifacetado” que já visitei até agora dentro do Estado de Israel. Há, realmente, judeus, muçulmanos e cristãos; há sinagogas, mesquitas e igrejas. Há alemães, russos, árabes, filipinos; há ortodoxos e há os "secularizados”. Mas, infelizmente, basta um olhar mais atento para ver que essa diversidade tem muito de propaganda e pouco de veracidade.

Haifa era um dos portos mais importantes do Império Otomano e tinha uma população predominante árabe e muçulmana. No entanto, com as ondas imigratórias da primeira metade do século XX, esse cenário inverteu-se, tornando-se os judeus o grupo religioso predominante. Ato contínuo, com a Guerra de Independência, foram os muçulmanos expulsos da cidade, muito deles vindo parar aqui, em Tulkarm, onde hoje cerca de 30.000 pessoas se amontoam em dois campos de refugiados.

 

DSC00917 Campanha do governo palestino pela questão dos refugiados

 

Wadi Nisnas, o bairro muçulmano par excellence, é o melhor exemplo desse êxodo: situado numa região super valorizada, entre o porto e as residências do bairro judaico do Hadar, hoje encontra-se descaracterizado e seus edifícios vem sendo gradativamente substituídos por prédios comerciais gigantescos. Aliás, a coisa é tão surreal que uma antiga mesquita hoje abriga uma casa noturna chamada Sofia Club, numa provável homenagem à Sofia búlgara. Além disso, umas tantas outras construções antiquíssimas foram derrubadas pra dar lugar a um estacionamento como desses que a gente encontra em qualquer lugar do mundo.

 

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Sei que a cultura não é estática. Sei que uma discussão sobre o que diferencia um prédio velho de um edifício digno de ser preservado para posteridade pode levar séculos e dúzias de xícaras de chá. O que importa aqui, no entanto, são as pessoas: é meio esquisito falar em convivência multicultural quando milhares de indivíduos foram expulsos de suas casas e um dos bairros mais afetados pela especulação imobiliária é justamente aquele que guarda boa parte da herança muçulmana. E, claro, tudo se torna pior quando não se nota muito interesse em preservar essa herança.

Voltarei pra Haifa dentro de alguns dias e certamente terei os mesmos sentimentos contraditórios, de alegria e tristeza. É definitivamente estranho poder sair quando quiser e ter a possibilidade de novamente admirar os jardins Baha’i e os montes que circundam a cidade, enquanto milhares de outras pessoas, também vivendo a 70 km dali, talvez jamais conseguirão fazê-lo.

13 de mar. de 2012

TLV

Gostei de Tel Aviv. Passei alguns dias lá, descansando e conhecendo um pouco do “outro lado”.

A cidade, de um modo geral, não tem o “peso” de Jerusalém, com todos os seus assentamentos e infindáveis discussões teológicas; não sei se era por causa do Purim, uma festa que, embora de fundo religioso, lembra muito o carnaval (as pessoas saem fantasiadas e podem tomar todas), mas o lugar tinha uma atmosfera bem alegre e despojada. Pessoas de bermuda, guris e gurias bebendo, cantando e gritando, todos nem aí pro Shabat, o feriado judaico. E depois, a praia; ah, a praia… sol, gente bonita e cerveja barata.

 

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Mas talvez todas essas qualidades sejam, também, os maiores defeitos de Tel Aviv. Pra quem saiu da Cisjordânia é um pouco espantoso ver tanto sossego enquanto a 50 km dali muros separam famílias e o exército age impunemente assustando moradores de pequenos vilarejos. Além disso, na mesma praia de areias brancas onde tomava sol e admirava a paisagem, pude ver helicópteros e navios de guerra dirigindo-se à Gaza, onde uma onda de violência teve lugar em razão da morte de um ativista local. Ou seja, Tel Aviv parece ser, definitivamente, O lugar para esquecer das amarguras do mundo.

No entanto, ainda que seja um lugar pra deixar as tristezas de lado, basta instigar um pouquinho as pessoas pra que elas abordem o tema mais comum nessas bandas: política e a segurança. Desde pequeninos são ensinados sobre as rudezas da criação do Estado de Israel - o que é plenamente justificável, porque a independência foi garantida pelas armas – e sobre o papel de todo cidadão na manutenção dessa conquista. Além disso, todas as pessoas devem servir ao exército por no mínimo dois anos, o que acaba criando uma mentalidade militarizada, que vê, em tudo, o risco de Israel ser apagado do mapa num piscar de olhos. 

Bem, se pode ser apagado do mapa, ou não, definitivamente não será por conta dos palestinos: esses estão anos luz de ter 1/10 do poder de fogo israelense e são as primeiras vítimas das demandas militares do outro lado do muro. Não quero e não estou menosprezando o sofrimento de ninguém, mas às vezes me parece que falta compreensão por parte do pessoal do lado de lá do muro de que a dor por essas bandas é multiplicada por 100.

Aliás, talvez a coisa que mais tenha ouvido das pessoas com quem conversei em Tel Aviv (jovens entre 18 e 23) tenha sido “desculpa, mas temos que agir assim”. Será que tem mesmo? Será que não percebem que a ocupação da Cisjordânia é motivada por algo que vai além da segurança, e que a “retirada” de Gaza, por exemplo, foi uma jogada incomprensível do mesmo ponto de vista da segurança, visto que esse quadradinho de terra sempre foi o grande foco das ações anti-Israel?

A minha impressão é que, não, as pessoas realmente não percebem ou não querem perceber. O espírito “Purim”, de agradecimento e celebração pelo simples fato de existir, não parece levar à conclusão de que a vida é também um bem perseguido por outros povos e que o convívio pacífico é algo possível se houver comprometimento; e, Tel Aviv, embora seja um ótimo lugar para descansar e apreciar a vida cultural israelense, de certa forma também leva à alienação dos moradores locais e turistas sobre o conflito. É por isso, aliás, que gostei tanto da cidade; afinal, pude, por alguns dias, me distanciar da realidade, embora ela insistisse em permanecer presente.

Bem, pra encerrar esses comentários vagos, sugiro a leitura de uma matéria que saiu na The Economist. Adianto que ela é forte, mas vale a pena ler porque expõe essa faceta da mentalidade local, que vê na segurança a justificativa para tudo.

7 de mar. de 2012

Equilíbrio

Sentados na grama, admirando a paisagem e esperando a abertura de umas das dezenas de portas agrícolas que dificultam o acesso dos palestinos às suas terras. Diante de nós, dos altos da vila de Fara’un, ao sul de Tulkarm, tem-se uma vista fantástica de Israel. Vê-se o mar, as planícies litorâneas, os campos cultivados, dezenas de cidadezinhas, Tel Aviv e… o famoso checkpoint de At Tayba, onde todos os dias milhares de trabalhadores são submetidos a condições desumanas. E é assim por aqui, pra cada burrico narigudo ou amendoeira há sempre um grande obstáculo. Sensações boas vêm sempre acompanhadas de um medo inexplicável de que algo muito ruim pode acontecer no instante seguinte.

 

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(Um dos meus burricos favoritos)

 

E, bem, como dizia, lá estávamos nós, sentados na grama, esperando a porta agrícola abrir. Conosco, o sol, as crianças e um fazendeiro que cantarolava músicas indianas. Pergunto ao fazendeiro se ele acha se está tudo bem.

“Sim, está tudo bem, nada de problemas em Fara’un. Os soldados são bons, nos tratam bem”.

 

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Os guris querem saber se eu gosto do “Barsshaaaa” (Barça). Quando vou explicar pra eles o que é o Grêmio Foot-ball Portoalegrense, aparecem os soldados israelenses para abrir a tal porta. Com eles, seus coletes, uniformes, capacetes e M16.

Paramos por alguns instantes para ver quantas pessoas vão passar. Contudo, notamos um certo desconforto entre as crianças: elas ficam alertas, acompanhando a movimentação dos militares (os meninos, principalmente, ficam mais agitados, enquanto as meninas se encolhem). Os israelenses, por sua vez, parecem meio surpresos com a presença de tanta gente, mas não fazem qualquer comentário.

Naquele momento entendi o que o nosso amigo de fato queria dizer.

Estabeleceu-se, ali, uma espécie de equilíbrio maldoso, em que “tudo bem” significa simplesmente “seguimos com nossas vidas”. Afinal, não há propriamente paz, pois várias casas da vila foram destruídas há alguns anos atrás e boa parte das restantes continua condenada pelo Exército Israelense pelo fato de simplesmente estarem perto demais do muro que separa os dois países. Além disso, a presença de aviões de monitoramento sobre a região parece sempre lembrar que a ocupação continua e que o som dos burricos jamais prevalecerá em Fara’un.

Subitamente me desconcentro. Um medo atroz me sobe pela espinha e pergunto ao nosso amigo se é seguro ficar com as crianças ali, tão perto dos soldados. Ele diz que não poderíamos ficar tão perto da porta, mas que nada vai acontecer. Seguimos a contagem e nossa conversa com as crianças, até o momento da porta ser fechada. Um dos meninos se levanta, e, meio emburrado, olhando em direção aos soldados, diz alguma coisa.

“Ele diz que gostaria de ir lá”, traduz o fazendeiro.

Os soldados seguem à frente para fechar a porta. Ninguém foi deixado pra lá do muro, todos puderam sair sem problemas. Estamos nos levantando quando, de repente, o menino emburrado resolve pegar uma pedra do chão. Parece que em frações de segundos uma catástrofe se abaterá, que todo aquele equilíbrio macabro pode ser quebrado por uma pedra arremessada na hora errada, no momento errado, pela pessoa errada. Tiros, reforços e outras coisas podem ser a resposta do outro lado e, a partir dali, sabe lá Deus o que mais.

O fazendeiro que nos acompanha habilmente se antecipa e abraça a criança, dizendo algumas palavras que soam bizarramente simpáticas. A criança larga a pedra e começa a rir, respondendo alguma coisa engraçada. Olho para trás, para ver a reação dos soldados, mas nada indica que eles tenham percebido o que estava prestes a acontecer. Fara’un pode respirar aliviada, pois tudo seguirá “bem”.

 

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4 de mar. de 2012

At Tayba

“Nós somos animais. Somos tratados como animais”.

Foi isso que eu ouvi de um palestino que se amontoava com outros três ou quatro para passar, ao mesmo tempo, pela primeira porta giratória do checkpoint de At Tayba, que já contava com uma fila de cerca de 200 pessoas às quatro da manhã, todas aglomeradas e na dependência da boa vontade de um funcionário qualquer, que, de uma câmera em algum lugar distante, regulava quem podia e quem não podia entrar.

 

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Eu fiquei aturdido com aquela afirmação. Me aproximei da “jaula” e tudo que consegui fazer foi balançar a cabeça e dizer “eu sei, é horrível”. Tentei engatar uma conversa naquele momento, perguntar qualquer coisa, mas a porta giratória abruptamente voltou a funcionar e o “animal” com o qual eu ia começar a falar pôde respirar um pouco e seguir para a etapa seguinte, o detector de metais.

Já ouvi muito que conflitos ou disputas devem ser apreciados com objetividade. Mortos, feridos, pessoas passando por checkpoints, crianças sendo impedidas de ir à escola, mulheres sendo revistadas por homens, tudo, se possível, deve ser convertido em número e apreciado por critérios que distanciem ao máximo o intérprete de seu objeto de estudo. É limpo, bonito e, em tese, permite ao interlocutor avaliar a mensagem transmitida da maneira que ele melhor entender. É a função denotativa da linguagem em sua forma mais acabada, pode-se dizer.

Pois bem, se querem objetividade, hoje, das quatro às sete da manhã, mais de 2500 indivíduos passaram por At Tayba; tivemos que ligar quatro vezes para a Humanitarian Hot Line (uma espécie de SAC dos checkpoints – porque aparentemente passar pela fronteira é como reclamar do iogurte estragado) para saber porque as coisas não estavam funcionando. Ligamos para uma ONG israelense para saber se eles tinham alguma notícia sobre o que havia acontecido, porque houvera uma queda substancial de passantes entre a primeira e a segunda hora de funcionamento do terminal (de 1400 para 600 pessoas, na média). Às 6h55min soubemos que a empresa privada que administra o lugar estava enfrentando problemas, mas que esses já seriam averiguados. Ao final, contamos, por alto, umas 500 pessoas na fila.

 

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Mas isso realmente não expressa nem metade do que eu experimentei hoje. O que eu vi e ouvi nessas três horas em que estive no checkpoint é impossível de mensurar com base em qualquer critério objetivo. Números não expressam o rosto e o sofrimento de ninguém, não servem para ilustrar o frio, a chuva, a lama, o lixo, o desespero e uma afirmação como “nós somos animais”. Normalizar o que aconteceu, tentando fazer uma análise sociológica, antropológica, histórica ou seja lá o que for, aceitando como parte do cotidiano ou como uma “questão de segurança” o tratamento dispensado às pessoas em At Tayba é algo que está fora das minhas capacidades.

 

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Em síntese, posso tentar fazer a análise que quiser, mas nada vai apagar a constatação de que, sim, nessas bandas, a vida e a dignidade têm pesos muito diferentes dependendo do lugar onde se nasça. Por questão de poucos quilômetros se decide quem merece e quem não merece ser tratado como ser humano.

27 de fev. de 2012

Refugiados

Eles vêm de Haifa, de Netanya, de Khadera, da região do Lago Tiberias, de toda a parte do que hoje é Israel. Ontem acabei conhecendo um pouco mais sobre suas vidas e sobre o que é morar com milhares de outras pessoas em uma região que não tem mais de 1 km² de área, com condições de vida que muito se assemelham a das favelas brasileiras em termos de infraestrutura.

Tulkarm tem dois campos de refugiados (Tulkarm e Nur Shams), onde moram 27.000 pessoas. São compostos, basicamente, por filhos ou netos de pessoas que tiveram que deixar suas casas em função das ondas migratórias judaicas e posterior ocupação do território palestino, notadamente entre os anos de 1946 e 1948. Hoje, segundo dados da UNRWA, os refugiados palestinos somam 5 milhões de pessoas (http://www.unrwa.org/etemplate.php?id=86). Isso é mais do que a própria população palestina efetivamente vivendo por aqui, que chega a 4,2 milhões, conforme dados do Banco Mundial (http://search.worldbank.org/data?qterm=palestine&language=EN).

Para eles, essa diáspora é conhecida como Al Nakba, algo que poderia ser traduzido como “A catástrofe”, e é evidente o impacto que tal fato teve sobre suas vidas. Indivíduos sem qualquer relação com o conflito que se impunha entre Israel e seus vizinhos árabes viram-se obrigados a deixar suas terras para trás, abandonando suas famílias e deixando uma longa história nas suas vilas e cidades de origem.

Essas pessoas sonham, obviamente, em voltar pra casa, ou, o que é mais comum, conseguir um outro passaporte, senão o jordaniano, que lhes possa dar uma chance de uma vida melhor (EUA, Reino Unido, o que seja). Por outro lado, conforme ouvimos de um soldado israelense hoje de manhã, as pessoas que ali moram são simplesmente “perigosas” e temos que “tomar cuidado”.

Não sei se vão conseguir retornar um dia, mas muitos desses refugiados ainda guardam consigo a chave de suas antigas residências. Diversos deles, ainda, vão às universidades locais e sonham alto, como alguns dos jovens que a gente recebe nos nossos grupos de discussão, buscando, dessa forma, criar alternativas que lhes permitam levar uma vida melhor.

Enfim, hoje não me sinto muito bem com minha escrita. Talvez algumas fotos ajudem a clarear um pouco mais as coisas.

Ah, um dos prédios daqui tem uma bandeira do Brasil. Não sei o porquê, mas provável que seja uma homenagem ao Daniel Alves :D

 

24 de fev. de 2012

Imobilidade

Checkpoint de Kafriat, quarta-feira, 16h.

Queríamos ver uma escola ameaçada de demolição, que se encontra numa vilazinha palestina que foi inadvertidamente deixada do outro lado do muro. Para chegar lá, pedimos ao  motorista que nos levasse até as proximidades da rodovia destinada exclusivamente aos moradores de Israel (sim, tem essas loucuras por aqui), e, dali, seguiríamos ao local em questão.

Caminhamos 100 metros até chegar ao terminal, onde um soldado nos parou, pediu nossos passaportes e disse que ia fazer uma checagem. Depois de duas horas em pé, parados no Checkpoint, pedimos nossos documentos de volta e ouvimos um lacônico “desculpe não poder ver a situação de vocês agora, mas peço que vocês se dirijam ao DCO Palestino para conseguir uma permissão para passar por aqui, porque assim é mais fácil”.

Precisava ter esperado duas horas pra dizer isso?! Outra coisa, o DCO é o cara responsável por juntar todas as requisições de trabalho e passagem de palestinos a Israel. Logo, por que diabos precisamos ir falar com ele para passar por ali? Obviamente, não querem nos deixar acompanhar algumas cositas…

Enquanto isso, os carros dos colonos de Enav e outros assentamos seguiam bem faceiros.

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Checkpoint de At Tayba, 4h da manhã de quinta.

Madrugada gelada. Eu e minha colega estamos no principal checkpoint de Tulkarm, destinado a trabalhadores palestinos que se dirigem a Israel. O terminal é controlado por uma empresa de segurança privada, mas não vemos nenhum funcionário trabalhando “do lado de cá”. Tudo é monitorado por meios eletrônicos: as portas giratórias são ativadas remotamente, as pessoas são vigiadas por câmeras o tempo todo e uma voz irritante não para de exigir que os indivíduos sejam mais ágeis ou que mostrem o que estão levando.

Em três horas contamos mais de 3000 passantes, todos com suas marmitinhas e obrigados a passar por um cercadinho metálico coberto de arame farpado e sabe-se lá quantas portas giratórias e detectores de metal. A “linha humanitária”, destinada a pessoas que eventualmente tenham que passar com mais urgência - por motivos de saúde, por exemplo -,  está obviamente fechada. Além disso, embora a limpeza e manutenção do local coubesse à Israel, que controla militarmente os arredores do checkpoint, há lixo por toda a parte.

Equação complicada, essa. Israel precisa da mão-de-obra palestina, mas parece achar que todo mundo pode ser um terrorista em potencial. Assim, inferniza a vida dos palestinos com exigências burocráticas e os submetem a essas condições degradantes.

Bem, é 7h10min da manhã e já há centenas de outras pessoas paradas na fila para passar pro outro lado.

 

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Sexta-feira em Kafr Qaddum e Ramin.

Duas vilas, dois problemas parecidos.

A primeira tinha uma estrada que a ligava a Jit, outra vila próxima, e, consequentemente, a uma das principais rodovias que saem de Ramallah em direção a Nablus. Ocorre que, no meio do caminho, Israel estabeleceu o assentamento de Qedumin e bloqueou a estrada, o que obriga os moradores de Kafr Qaddum a darem uma volta de uns 30 km pra fazer uma viagem que não chegava a 5km. Além disso, com a construção do muro por essas bandas, é provável que a vila perca mais de 50% de suas terras.

Ramin, por sua vez, tinha acesso a essa mesma rodovia. Todavia, depois da segunda intifada (lá por 2001 ou 2002) ele foi cortado  e jamais restabelecido. Desde então as autoridades locais vem mantendo contato com os israelenses para construir um novo acesso, mas esses alegam motivos de “segurança viária” para não construí-lo. Com isso, os habitantes de Ramin tem que dar uma volta de 20 km para acessar a via principal. O prefeito está esperançoso de que tudo vá dar certo e espera que nós o ajudemos da maneira que conseguirmos, mas sabe-se lá… o bacana mesmo é complicar :))

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Bem, liberdade de locomoção pra quê?

21 de fev. de 2012

Crianças

“Hello, how are you? What’s your name?”

Esse é o mantra das crianças todas as vezes que nos vêem. E, após repetir seu nome umas três vezes, não adianta tentar estabelecer uma conversa com elas: é tudo que elas sabem dizer em inglês. Depois disso, só sorrisos e palavras em árabe. Aliás, nessas horas ser brasileiro ajuda horrores, porque, se você disser sua nacionalidade, além dos sorrisos, ouvirá uns “Ronaldos”, “Real Madrid”, “Barcelona”…

Mas a verdade é que é difícil saber exatamente o que é uma criança por essas bandas. Meninos de 13 anos atirando pedras, garotos de 16 anos segurando M-16, tudo parte desse conflito maluco que deixa ambas as partes num clima ininterrupto de terror e insegurança. Crianças, nessas horas, são importantes: se bem “educadas”, serão elas que poderão seguir em frente com a causa, seja ela qual for.

Hoje de manhã acompanhei como isso funciona na prática. Tive a oportunidade de ver crianças palestinas participando de um comício organizado pelo “Prisoner’s Club”, associação que auxilia famílias que possuem parentes presos em Israel, em favor  da libertação de Khader Adnan  (http://www.jpost.com/NationalNews/Article.aspx?id=258739) e de outras pessoas que se encontram ilegalmente detidas (a chamada “prisão administrativa”). Elas chegaram bem barulhentas, empunhando bandeiras do “Prisoner’s Club” e de vários partidos políticos locais; com elas, vinham seus professores.

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“Absurdo”, podem pensar, “como esses professores levam seus alunos para comícios políticos, isso é lavagem cerebral”. Mas, numa guerra, cada um usa as armas disponíveis; se os do lado de lá podem ser ensinados a proteger os seus locais sagrados, mesmo que isso implique incorporar a Cisjordânia, os jovens daqui também devem ser preparados para defender sua Palestina. Educação e História, nesse sentido, acabam sendo armas às vezes muito mais eficazes do que caças ou foguetes feitos de PVC. Mudar essa mentalidade, promovendo um ensino que reforce ambas as identidades e a necessidade de cooperação (já existe algumas iniciativas nesse sentido), sem exclusão de um em detrimento do outro, é algo a ser exigido dos dois lados, mas acho difícil que se chegue a um consenso sobre o tema num curto período de tempo.

Mas, no fim, são mesmo crianças. Não deu nem 15 minutos e toda a formação cuidadosamente preparada estava desfeita; alguns apareceram com chocolate e refrigente, recém comprado no mercadinho local. Daí me viram tirando fotos: foi a senha pra uma enxurrada de “hellouuus” e “how are yousss”, que só foi contida pela ação dos incansáveis professores. Deu 30 minutos e as crianças foram embora, já bem menos barulhentas.

Então era o momento dos adolescentes, com seus keffiyehs (http://en.wikipedia.org/wiki/Keffiyeh), se aproximarem e perguntarem sobre minha conta de Facebook, sobre Ronaldo, Brasil, etc e tal. Convidei-os para aparecer no nosso grupo de discussão no Campo de Refugiados, distribui cartões, mas eles pareciam mais interessados em ter um amigo estrangeiro do que qualquer outra coisa. Adolescente, afinal de contas, é uma criança crescidinha.

Realmente, não adianta tentar mudar nada. Quando se é jovem, até o que é sério parece bem divertido.

16 de fev. de 2012

Wadi Hilweh

Há um grande projeto sendo levado a cabo em Jerusalém, chamado City of David. É um sítio arqueológico gigantesco, aberto à visitação turística, com alamedas floridas e tudo o mais; seu propósito, segundo consta no site da fundação que mantém esse espaço (http://www.cityofdavid.co.il), é recuperar o que teria sido a Jerusalém de 3000 anos atrás.

O problema é que as escavações ocorrem no bairro árabe de Silwan. E Silwan é, definitivamente, uma região estratégica. Localizado ao sul do Muro das Lamentações, nas proximidades do Monte das Oliveiras, o bairro possui uma população formada por centenas de habitantes – majoritariamente palestinos –, que têm suas residências constantemente ameaçadas por demolições por parte da prefeitura, que possui planos “especiais” para a região.

Claro que é importante recuperar a História, preservando o que for possível do passado; o que não é razoável, entretanto, é negligenciar o presente. É quase dogmático o entendimento de que, em se tratando de patrimônio histórico, faz-se necessário conciliar o que seria uma espécie de binômio “preservação – necessidade”, ou seja, trabalhar para conservar/revelar o passado ao mesmo tempo que se respeita a realidade e as necessidades atuais. Assim, se há famílias morando no que seria um potencial sítio arqueológico, o razoável seria  trabalhar para que elas fossem de alguma forma incluídas no projeto de conservação/recuperação, ou que se buscasse outras alternativas .

Mas ser razoável não é algo que falta nos territórios ocupados. Aliás, o que vemos por aqui é que muitas vezes sítios arqueológicos, ou mesmo reservas florestais, são estabelecidos nas áreas ocupadas com a finalidade de servir de ponta de lança de assentamentos ou para outros propósitos assemelhados. E nós, do time de Tulkarm, que estamos em Jerusalém para treinamento, tivemos o desprazer de ver como essa política ocorre de fato, no coração de Silwan.

Voltávamos da City of David, às 17h, por uma avenida chamada Wadi Hilweh, quando nos deparamos com uma grande área cheia de escombros, com pessoas sentadas em volta de uma fogueira, a maioria crianças. Sabíamos, já pela manhã, que havia risco de demolições na área; aí juntamos uma coisa à outra e, pronto... ali estávamos nós, inesperadamente, às voltas com uma das piores situações que já vivenciei. Funcionários da prefeitura haviam estado ali e, em questão de horas, demoliram um centro comunitário.

Sentamo-nos com as pessoas e descobrimos que o proprietário da área falava excelente espanhol, o que nos ajudou a estabelecer uma boa comunicação. Ele nos explicou, então, que no local havia uma quadra poliesportiva – as goleiras ainda estavam lá – e uma espécie de associação contra a violência dos assentamentos judaicos vizinhos. Comentou, ainda, sobre o longo procedimento burocrático que um palestino tem que passar para conseguir uma licença para edificar em Jerusalém, ressaltando que já estava ali fazia mais de sessenta anos, de modo que a demolição não fazia o menor sentido. Referiu, também, que dois dias atrás outro time do EAPPI estivera ali, justamente para conhecer o bairro e as atividades do centro que ele mantinha. Tudo posto abaixo.

 

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Aí perguntei o motivo para a destruição. E a resposta foi chocante: havia a necessidade de construir um estacionamento nas cercanias que servisse aos visitantes do tal sítio arqueológico e da Old City. Foi difícil manter a serenidade a partir daquele momento, mas nosso papel é justamente esse: acompanhar as pessoas, dando-lhes a atenção de que necessitam. Não podemos, portanto, tornar-nos um novo estorvo.

Assim, permanecemos ali por cerca de uma hora, conversando sobre o que havia ocorrido, sobre as demolições que estariam a caminho e cogitando as providências possíveis. Mas, àquela altura, pouco podíamos fazer; aliás, a verdade é que, exceto chamando outras organizações que entendem do emaranhado legal israelense, pouco poderíamos fazer para evitar o ocorrido. É impressionante, mas as coisas simplesmente “acontecem” nesse lugar, com uma arbitrariedade absurda; em se tratando de demolições é comum, por exemplo, haver a destruição da casa vizinha, e não aquela realmente “condenada” pela municipalidade. Aí, quando se dão conta do erro, o que fazem as autoridades locais? Vão lá e destroem o lugar “correto”.

O propósito disso tudo é evidente: expulsar gradualmente a população árabe de Jerusalém, confinando-a, apagando todo vestígio que sugira sua existência ou reforce sua identidade. Não foi ao acaso que o alvo da demolição tenha sido um centro comunitário. De qualquer maneira, apesar das dificuldades, acredito que a população de Silwan seguirá resistindo – até que, enfim, a última casa se converta em mais uma vaga de estacionamento.

11 de fev. de 2012

Do lado de cá

Já estou em Tulkarm, uma pequena cidade palestina no norte da Cisjordânia. Para chegar aqui tive que tomar um ônibus em Jerusalém Oriental, ir para Rammallah, e de lá tomar uma van, numa viagem que durou cerca de 45 minutos. Chegando aqui, conheci a equipe que iremos suceder (mas substituir vai ser difícil, porque eles são excelentes!), jantamos, dormimos e fomos para a nossa primeira “missão”.

Bem, foi impactante.

Estivemos numa vila nas redondezas, chamada Kafr Qaddum, onde todas as semanas os moradores se manifestam contra a presença de diversos assentamentos judaicos na região (todos os assentamentos judaicos no interior da Palestina são ilegais) e contra as dificuldades de locomoção que isso impõe. Nesse processo, os palestinos se reúnem e saem caminhando por uma estrada que, apesar de ser trajeto óbvio para outra vila, é periodicamente bloqueada pelo exército israelense em razão da presença de um assentamento no local; e, como costuma acontecer, os soldados param estrategicamente em frente à última casa da vila. 

E sobre essa casa que eu gostaria de falar. Mais precisamente sobre a família que nela vive, que viemos a conhecer e que acompanheremos ao longo desses meses na Terra Santa (?).

A amendoeira que fica do lado da casa, completamente florida, parece dar um ar um pouco bucólico ao lugar. Mas o bucólico para por aí, porque em toda manifestação que ocorre eles têm o prazer de serem visitados pelos militares israelenses, que, valendo-se do caráter estratégico do lugar, normalmente sobem na sacada da residência para arremessar gás lacrimogênio e outras cositas contra os manifestantes.

Esse fato, aliás, já levou a família a simplesmente deixar de ocupar o segundo e terceiro pisos e passar a viver somente no primeiro pavimento. Portas e janelas, evidentemente insuficientes para impedir o ingresso de soldados, acabam também se revelando inúteis contra os efeitos do gás lacrimogênio, que invade a residência e a deixa com um ar pesado, que parece queimar os olhos. Com isso, toda a família, afora problemas de saúde, vê-se em face de problemas aparentemente bobos: os filhos não podem dormir na sacada durante os meses quentes e o mais velho deles dificilmente conseguirá uma esposa que aceite ir viver próxima aos seus parentes, como dita a tradição, em virtude dos riscos do local.  

A família toda parece bem traumatizada, mas, no curso da nossa conversa, já parecia bem mais tranquila com o fato de simplesmente estarmos ali, escutando o que tinham a dizer. A senhora, aliás, parecia completamente resignada: “já nos expulsaram da nossa terra, colocaram um muro, dividiram o nosso território. Que mais eles querem? Tudo é por segurança.” Sim, nesse lugar, a segurança parece justificar coisas espantosas; afinal, como absurdamente comentou um embaixador israelense durante nosso treinamento, em referência aos atentados suicidas (que já não são recorrentes), supostamente, para os árabes, a honra seria mais importante do que a vida, enquanto que para os israelenses a vida seria um bem acima de todos os outros, e por isso, deveria ser protegida a todo custo.

Mas, afinal, vale a pena proteger a vida de um à custa da vida de outro? Qual o preço e as consequências disso? É digno invadir a casa de uma família e matá-la aos poucos, senão fisicamente, pelo menos emocionalmente?

Por enquanto, vou refletindo. Mas o que importa, mesmo, é que ao final da nossa conversa minhas duas companheiras EAs pararam para admirar as flores da amendoeira. A dona da casa cortou três ramos – dois para minhas colegas e outro pro meu colega, que já tem cabelos brancos (eu provavelmente não recebi porque sou homem, jovem e desconhecido – ou porque simplesmente não foram com minha cara :P) - e – sem clichê – os entregou com um sorriso no rosto, já bem mais feliz.

Aí vão as fotos da estrada e das flores:

 

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9 de fev. de 2012

Chegada

Porto Alegre – São Paulo – Roma – TelAviv - Jerusalém.

Nesse trajeto, o meu pensamento mais recorrente era como agiria ao chegar no posto de imigração de Tel Aviv. Afinal, todo posto de imigração tem um certo grau de emoção, e esse de Israel em especial por todas as questões de segurança. E se não me deixassem entrar? E se me dissessem que não queriam gente do Conselho Mundial de Igrejas por lá? E se eles simplesmente não gostassem da minha cara?!

Pensando nisso, passei um bom tempo me preparando. Treinei algumas vezes o que iria dizer. Cortei barba e cabelo pra parecer mais decente. Fui com uma roupa arrumadinha e fiz questão de usar óculos, com a esperança de que tivessem certeza absoluta de que eu era um respeitável jovem adulto. Nos voos, então, fui repetindo mentalmente a situação que iria encarar, simulando possíveis diálogos e respostas diplomáticas. Pra dar um colorido à coisa, duas espinhas resolveram aparecer no meu queixo, o que me deu um ar ainda mais “adolescente de férias”.

A minha ansiedade chegou ao ápice durante o voo Roma - Tel Aviv; ali, me avisaram, era extremamente aconselhável que eu falasse o menos possível com as pessoas ao meu redor, para não atrair a atenção de algum agente do Mossad ou qualquer loucura do tipo. Afinal, era O brasileiro do voo e provavelmente o único que fazia questão de falar em inglês com as aeromoças. Pra piorar, havia duas garotas mais ou menos da minha idade sentadas nas outras duas poltronas da minha fileira, que, embora israelitas, falavam uns negócios engraçados em português. Pronto: só podiam ser as tais agentes do serviço secreto de Israel que queriam investigar porque diabos tinha um brasileiro viajando sozinho pra um lugar, digamos, “exótico”.

Entendi que elas queriam puxar assunto, mas me concentrei em escutar “Ai, se eu te pego” umas quinze vezes, fingindo estar completamente alheio ao mundo. Mas, no final, não teve jeito: uma delas me ofereceu um chiclete e acabei aceitando. Aí vieram os assuntos que mais temia que abordassem comigo: da onde era, o que ia fazer em Tel Aviv, onde ia ficar e se pretendia viajar. Respondi às perguntas de forma resumidinha, fiz piadinhas, falei das festas de Tel Aviv e da minha vontade de visitar Haifa; elas me contaram que tinham ido trabalhar no Brasil pra anunciar produtos israelenses, que tinham gostado de funk e… ficamos amiguinhos!

Então, no trajeto entre o avião e o aeroporto saí conversando com elas. Isso, de alguma forma, me ajudou a evitar contato com os guardinhas que ficam esperando pra abordar pessoas aleatoriamente.

Feito isso, elas foram para os guichês destinados a cidadãos israelenses e eu fui para o de estrangeiros. Escolhi a fila que tinha uma atendente de cabelo curto loiro, que me pareceu mais simpática, e… pronto. Foram os 30 segundos mais tensos da minha vida. Revivi meu treinamento, as coisas que iria dizer caso me perguntassem isso ou aquilo; parecia que as palavras não sairiam da minha boca, que desmaiaria, que seria deportado, que colocariam um abacaxi gigante na minha cabeça e me fazer dançar a hula-hula… o fim, o fiiiiiiiim!

A atendente me chamou com um “please”. Dirigi-me ao guichê, dando uns 4 passos, no máximo. Soltei um “hi, how are you” e deixei meu passaporte. Minhas mãos suavam. Ela então olhou para o passaporte, conversou com alguém num microfone, carimbou o documento, pôs um carnê de saída dentro dele e me devolveu tudo sem dizer uma palavra. Assim, sem perguntas, sem nada, a minha ansiedade esvaziou e me senti um bocó.
“That’s all?!”, perguntei, completamente incrédulo.
“Yes”, ela respondeu. Soltei um “thank you” ainda mais incrédulo.

Juntei tudo e fui embora com minha bagagem, feliz da vida e satisfeito com a descoberta de que não pareço um terrorista :))
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P.s: apesar dessa história de “sucesso”, é preciso dizer que alguns colegas meus – suecos e finlandeses, principalmente – foram levados “pro cantinho” e questionados a respeito das intenções deles no país, um deles por umas três horas, inclusive. Eles sim puderam colocar em prática o treinamento!

16 de jan. de 2012

Roteiros Turísticos

O site do Ministério do Turismo de Israel é bem bacana (http://www.goisrael.com). Lá tem um mix de informações, com sugestões de lugares para visitar, dicas de viagem e roteiros turísticos, inclusive alguns com enfoque específico nas culturas judaica e cristã. Só tem um porém: não há nenhum roteiro específico para a cultura islâmica.

Bem, para não ser injusto, pela pesquisa que eu fiz no site, os maometanos são mencionados em alguns tópicos, como na parte que trata de Acre, cidade que ficou famosa por servir de base para os cruzados nas suas lutas por Jerusalém, ou na seção relativa aos grupos étnicos formadores de Israel. Ali, a título de explicação, afirma-se que os “muçulmanos israelenses” somariam 1, 2 milhões de habitantes, equivalendo a 20% da população total do país; ressalta-se, também, ser interessante visitar a Mesquita de Al-Aqsa, bem como o espaço dedicado à história muçulmana do museu da  Torre de David (http://www.goisrael.com/Tourism_Eng/ Tourist%20Information/Ethnic%20Groups/Pages/Muslim%20Community.aspx).

Mas não vai muito além disso.

A ausência de um roteiro específico para aqueles que desejam se aprofundar na cultura maometana, dentro do território de Israel, é bem significativa e, a meu ver, reveladora do estado de ânimo que provavelmente encontrarei por lá. Um lado querendo negar o outro, embora seja evidente a completariedade entre ambas as comunidades. O turismo, aqui, também se apresenta como mais uma arma na luta travada entre os dois grupos pela “propriedade” da cultura e da história forjadas na região. Fica clara, ainda, a tentativa de construção de um discurso que privilegia as comunidades judaica e cristã em detrimento da muçulmana.

Nada de muito novo nisso. O elemento religioso geralmente tem um peso importante nos movimentos nacionalistas; ele se mostrou essencial, por exemplo, com os católicos irlandeses e os gregos católicos ortodoxos em suas lutas, respectivamente, contra os ingleses, geralmente associado à religião anglicana, e os turcos maometanos. Mesmo mais recentemente  notou-se uma tentativa de contextualização semelhante com relação ao processo de libertação de Kosovo, que seria um “enclave” islâmico numa Sérvia majoritariamente ortodoxa. Então, a partir dessas orientações, vão se construindo diretrizes, com a consagração de referenciais de patrimônio histórico que formulam uma auto-imagem da “nação”, atrelando-a a uma determina corrente religiosa.

Talvez esse seja um dos grandes problemas dos Estados verdadeiramente multiculturais: respeitar as diferentes orientações culturais e religiosas, atribuindo-lhes o reconhecimento devido. Por que, afinal, atrelar a uma só corrente religiosa/cultura/étnica? No caso de Israel, relativamente à cultura muçulmana, isso se torna ainda mais difícil em razão das inúmeras feridas abertas pelos diversos conflitos em que se viu envolvido com o mundo árabe, tanto em reação a ataques externos quanto por iniciativa própria. Isso, contudo, não pode servir de desculpa para negar a completaridade evidente entre judeus e muçulmanos, que se revela inclusive quando vamos falar de um tema (aparentemente) tão leve quanto pontos de interesse turístico.

Aliás, complementaridade e essa mistura são o que tornam a região tão vibrante. Prefiro, assim, ir pronto para aproveitar o que todos os lados têm a me oferecer de cutura e sabedoria, sem um roteiro que diga quem eu sou ou quem eu não sou. 

11 de jan. de 2012

Continuidades

Quando passaram a existir Israel e Palestina?

Essa vai ser uma das dúvidas que certamente recairá sobre mim ao longo do percurso. Afinal, por alguma causa insondável do destino, quis Deus que numa mesma região se fizessem presentes três das principais correntes monoteístas. E, com esse viés religioso, ergueram-se inúmeras correntes políticas, cada uma tentando conquistar para si a hegemonia sobre esse espaço sagrado.

Embora possamos traçar a um passado longínquo as reivindicações de soberania sobre a Terra Santa, tais pleitos estão associados a um aspecto muito mais cultural, atrelado aos processos de construção de identidades nacionais, do que propriamente a uma verdade suprema e inquestionável, que atribuiria a um povo, em detrimento dos outros, a posse sobre aquela área. Em outras palavras: por mais que remetam à Antiguidade ou à Idade Média o seu “título” sobre Palestina/Israel e, de forma mais candente, sobre Jerusalém, a verdade é que o judeu, o cristão ou o muçulmano que estão atualmente naquela região pouco ou nada tem a ver com aqueles que lá viviam nos tempos de Salomão, das Cruzadas ou de Saladino.

Realmente, o movimento internacional pela consolidação de um Estado judeu, embora acalentado por muito tempo, só foi ganhar ímpeto no final do século XIX e início do Século XX, notadamente a partir da 1ª Guerra Mundial, com o denominado Sionismo. Nesse período, contudo, não havia certeza do lugar em que ele poderia ser estabelecido, embora, é claro, houvesse uma preferência explícita pela sua constituição na terra do qual provenientes os antigos hebreus. Note-se, ainda, que também havia judeus explicitamente contrários ao estabelecimento de um Estado nacional, seja porque achavam que tal deveria ocorrer por ação da providência divina ou porque isso ia de encontro às diretrizes socialistas da época, que denunciavam o nacionalismo como uma ferramenta para a desunião do proletariado.

Da mesma forma, a ideia de uma nacionalidade palestina também é recente, tendo sua origem identificada em revoltas contra o Império Turco-Otomano ainda no século XIX. Esse movimento, tal como o sionismo, ganhou força no pós-1ª Guerra, com o processo de emancipação do mundo árabe. Ou seja, naquela pequena unidade política chamada Palestina, dominada pelos britânicos depois da queda do governo de Istambul (respeitosamente chamado de o Homem Doente da Europa), também foi se forjando uma consciência identitária própria, que, tal como ocorria com seus pares judeus, buscava para si elementos que a distinguisse de seus vizinhos jordanianos, sírios, egípcios, etc.

Aliás, para melhor compreensão da situação, aí vai um mapa que, a grosso modo, mostra como ficou a configuração do Oriente Médio pós-1ª Guerra:

 

mandate (Fonte: http://speedchange.blogspot.com/2011/09/september-11-2001-knowing-history.html)            

 

Bom, o que quero dizer com tudo isso: que é muito difícil falar em continuidades num espaço de mobilidade tão grande quanto o Oriente Médio e, mais especificamente, na região em que situados Israel e Palestina. O processo de consolidação dos Estados Nacionais naquela região é recente, e qualquer tentativa de associar tal fato a um passado bíblico, ou a um desejo incompreensível de “riscar os infiéis do mapa”, respeitada as posições em contrário, é algo no mínimo complicado. Uma coisa é a herança cultural e religiosa, que ajuda a definir a identidade de um povo, a “construir a nação”, outra é a mobilização política organizada para o estabelecimento de uma unidade política soberana, que depende de inúmeros outros fatores.

Assim, não podemos entender que só um pode ter o título exclusivo sobre a região da Palestina: a despeito de eventuais divergências culturais e religiosas, politicamente foi acordado o estabelecimento de dois Estados na região, e tal fato deve ser aceito como pronto e acabado. No entanto, ainda assim falta um país que sirva de casa aos palestinos; quando que esse surgirá é um mistério que provavelmente não teremos resposta por um bom tempo.