22 de mar. de 2012

Yanoun

Yanoun, no norte da Cisjordânia, a poucos quilômetros do Vale do Rio Jordão. Esse lugarejo de cerca de 70 habitantes, dividido entre Lower e Upper Yanoun, que vive basicamente da agricultura, é um marco da resistência palestina.

DSC01752 Upper Yanoun, a metrópole

Praticamente toda semana colonos dos assentamentos vizinhos fazem “passeios” pela vila e arredores com o intuito de intimidar seus moradores. E, de fato, em 2002 esse vilarejo ficou completamente deserto depois de uma violenta ação dos colonos, que cortaram centenas de oliveiras e agrediram moradores. No entanto, graças a pronta resposta de ativistas, que estabeleceram uma espécie de posto de observação permanente no local, puderam os residentes originais retornar a Yanoun.

 

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Bem, talvez uma das coisas mais absurdas das tantas coisas desse conflito absurdo seja justamente a presença de assentamentos judaicos em território que deveria pertencer à Palestina e a violência dos colonos. Temos essa imagem de que os árabes são terroristas barbudos e perigosos, mas a verdade é que um colono fundamentalista é tanto ou mais agressivo, principalmente se considerado que muitas vezes agem sob o olhar complacente do exército (que, no entanto, também pode vir a ser o alvo!). Aliás, nos últimos anos, segundo a ONU, tem-se observado um aumento substancial no número de ações violentas por parte dos assentados contra a população local, como uma espécie de resposta a qualquer mínima sombra de tentativa de distensão (sim, o minimalismo é permitido nesse caso).

E Yanoun, no caso, deu o azar tremendo de ficar cercada por assentamentos, todos obviamente posteriores ao estabelecimento da vila. E, o que é pior, fica do lado da colônia de Itamar, considerada uma das mais violentas, também segundo dados da ONU. Daqui da sala, aliás, consigo enxergar as luzes do outpost de Itamar (não confundir com este Itamar), que ficam permanentemente acesas para monitorar as vilas vizinhas.

Mas, claro, a questão não é simplesmente expulsar 70 fazendeiros armados com 300 ovelhas, mas sim tomar suas terras e permitir aos colonos acessar mais facilmente o Vale do Rio Jordão, de importância fundamental na estratégia israelense de controle de recursos hídricos e de cerco à população palestina. Novamente bato na tecla da segurança: por mais que digam que é isso que importa, a verdade é que ocupação israelense está MUITO longe de se limitar exclusivamente a esse tema – o que ocorre, aqui, é um projeto calculado de expansão, que busca gradualmente sufocar as comunidades locais, fazendo-as desaparecer ou ficarem enclausuradas.

Como já tinha sido observado pelo EA Eduardo Minossi, só vai haver paz mesmo quando os assentamentos forem retirados dos territórios palestinos. Isso, no entanto, parece ser um sonho distante. A mentalidade corrente de um assentado é, em geral, de que ele tem a missão divina de ocupar essas terras e expulsar os residentes. E, bem, vai tentar conversar com um colono que ele tem que procurar outro lugar pra morar…

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Esse post foi escrito num momento em que estava de bom humor. Mas uma viagem ao Vale do Rio Jordão (rio?!) é mais do que suficiente pra acabar com ele…

18 de mar. de 2012

Haifa

Haifa fica no norte de Israel, no entorno de um dos portos mais movimentados da região do Levante. Ela espalha-se, vibrante e imponente, por uma baía belíssima até encontrar as primeiras escarpas dos montes esverdeados que abrigam Nazaré. Nesse ambiente tão amistoso é que, conforme propagandeado por  Israel, teria surgido um exemplo de boa convivência entre judeus, muçulmanos, cristãos e outros credos religiosos, como os Baha’i.

E, de fato, talvez Haifa tenha sido o lugar mais “multifacetado” que já visitei até agora dentro do Estado de Israel. Há, realmente, judeus, muçulmanos e cristãos; há sinagogas, mesquitas e igrejas. Há alemães, russos, árabes, filipinos; há ortodoxos e há os "secularizados”. Mas, infelizmente, basta um olhar mais atento para ver que essa diversidade tem muito de propaganda e pouco de veracidade.

Haifa era um dos portos mais importantes do Império Otomano e tinha uma população predominante árabe e muçulmana. No entanto, com as ondas imigratórias da primeira metade do século XX, esse cenário inverteu-se, tornando-se os judeus o grupo religioso predominante. Ato contínuo, com a Guerra de Independência, foram os muçulmanos expulsos da cidade, muito deles vindo parar aqui, em Tulkarm, onde hoje cerca de 30.000 pessoas se amontoam em dois campos de refugiados.

 

DSC00917 Campanha do governo palestino pela questão dos refugiados

 

Wadi Nisnas, o bairro muçulmano par excellence, é o melhor exemplo desse êxodo: situado numa região super valorizada, entre o porto e as residências do bairro judaico do Hadar, hoje encontra-se descaracterizado e seus edifícios vem sendo gradativamente substituídos por prédios comerciais gigantescos. Aliás, a coisa é tão surreal que uma antiga mesquita hoje abriga uma casa noturna chamada Sofia Club, numa provável homenagem à Sofia búlgara. Além disso, umas tantas outras construções antiquíssimas foram derrubadas pra dar lugar a um estacionamento como desses que a gente encontra em qualquer lugar do mundo.

 

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Sei que a cultura não é estática. Sei que uma discussão sobre o que diferencia um prédio velho de um edifício digno de ser preservado para posteridade pode levar séculos e dúzias de xícaras de chá. O que importa aqui, no entanto, são as pessoas: é meio esquisito falar em convivência multicultural quando milhares de indivíduos foram expulsos de suas casas e um dos bairros mais afetados pela especulação imobiliária é justamente aquele que guarda boa parte da herança muçulmana. E, claro, tudo se torna pior quando não se nota muito interesse em preservar essa herança.

Voltarei pra Haifa dentro de alguns dias e certamente terei os mesmos sentimentos contraditórios, de alegria e tristeza. É definitivamente estranho poder sair quando quiser e ter a possibilidade de novamente admirar os jardins Baha’i e os montes que circundam a cidade, enquanto milhares de outras pessoas, também vivendo a 70 km dali, talvez jamais conseguirão fazê-lo.

13 de mar. de 2012

TLV

Gostei de Tel Aviv. Passei alguns dias lá, descansando e conhecendo um pouco do “outro lado”.

A cidade, de um modo geral, não tem o “peso” de Jerusalém, com todos os seus assentamentos e infindáveis discussões teológicas; não sei se era por causa do Purim, uma festa que, embora de fundo religioso, lembra muito o carnaval (as pessoas saem fantasiadas e podem tomar todas), mas o lugar tinha uma atmosfera bem alegre e despojada. Pessoas de bermuda, guris e gurias bebendo, cantando e gritando, todos nem aí pro Shabat, o feriado judaico. E depois, a praia; ah, a praia… sol, gente bonita e cerveja barata.

 

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Mas talvez todas essas qualidades sejam, também, os maiores defeitos de Tel Aviv. Pra quem saiu da Cisjordânia é um pouco espantoso ver tanto sossego enquanto a 50 km dali muros separam famílias e o exército age impunemente assustando moradores de pequenos vilarejos. Além disso, na mesma praia de areias brancas onde tomava sol e admirava a paisagem, pude ver helicópteros e navios de guerra dirigindo-se à Gaza, onde uma onda de violência teve lugar em razão da morte de um ativista local. Ou seja, Tel Aviv parece ser, definitivamente, O lugar para esquecer das amarguras do mundo.

No entanto, ainda que seja um lugar pra deixar as tristezas de lado, basta instigar um pouquinho as pessoas pra que elas abordem o tema mais comum nessas bandas: política e a segurança. Desde pequeninos são ensinados sobre as rudezas da criação do Estado de Israel - o que é plenamente justificável, porque a independência foi garantida pelas armas – e sobre o papel de todo cidadão na manutenção dessa conquista. Além disso, todas as pessoas devem servir ao exército por no mínimo dois anos, o que acaba criando uma mentalidade militarizada, que vê, em tudo, o risco de Israel ser apagado do mapa num piscar de olhos. 

Bem, se pode ser apagado do mapa, ou não, definitivamente não será por conta dos palestinos: esses estão anos luz de ter 1/10 do poder de fogo israelense e são as primeiras vítimas das demandas militares do outro lado do muro. Não quero e não estou menosprezando o sofrimento de ninguém, mas às vezes me parece que falta compreensão por parte do pessoal do lado de lá do muro de que a dor por essas bandas é multiplicada por 100.

Aliás, talvez a coisa que mais tenha ouvido das pessoas com quem conversei em Tel Aviv (jovens entre 18 e 23) tenha sido “desculpa, mas temos que agir assim”. Será que tem mesmo? Será que não percebem que a ocupação da Cisjordânia é motivada por algo que vai além da segurança, e que a “retirada” de Gaza, por exemplo, foi uma jogada incomprensível do mesmo ponto de vista da segurança, visto que esse quadradinho de terra sempre foi o grande foco das ações anti-Israel?

A minha impressão é que, não, as pessoas realmente não percebem ou não querem perceber. O espírito “Purim”, de agradecimento e celebração pelo simples fato de existir, não parece levar à conclusão de que a vida é também um bem perseguido por outros povos e que o convívio pacífico é algo possível se houver comprometimento; e, Tel Aviv, embora seja um ótimo lugar para descansar e apreciar a vida cultural israelense, de certa forma também leva à alienação dos moradores locais e turistas sobre o conflito. É por isso, aliás, que gostei tanto da cidade; afinal, pude, por alguns dias, me distanciar da realidade, embora ela insistisse em permanecer presente.

Bem, pra encerrar esses comentários vagos, sugiro a leitura de uma matéria que saiu na The Economist. Adianto que ela é forte, mas vale a pena ler porque expõe essa faceta da mentalidade local, que vê na segurança a justificativa para tudo.

7 de mar. de 2012

Equilíbrio

Sentados na grama, admirando a paisagem e esperando a abertura de umas das dezenas de portas agrícolas que dificultam o acesso dos palestinos às suas terras. Diante de nós, dos altos da vila de Fara’un, ao sul de Tulkarm, tem-se uma vista fantástica de Israel. Vê-se o mar, as planícies litorâneas, os campos cultivados, dezenas de cidadezinhas, Tel Aviv e… o famoso checkpoint de At Tayba, onde todos os dias milhares de trabalhadores são submetidos a condições desumanas. E é assim por aqui, pra cada burrico narigudo ou amendoeira há sempre um grande obstáculo. Sensações boas vêm sempre acompanhadas de um medo inexplicável de que algo muito ruim pode acontecer no instante seguinte.

 

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(Um dos meus burricos favoritos)

 

E, bem, como dizia, lá estávamos nós, sentados na grama, esperando a porta agrícola abrir. Conosco, o sol, as crianças e um fazendeiro que cantarolava músicas indianas. Pergunto ao fazendeiro se ele acha se está tudo bem.

“Sim, está tudo bem, nada de problemas em Fara’un. Os soldados são bons, nos tratam bem”.

 

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Os guris querem saber se eu gosto do “Barsshaaaa” (Barça). Quando vou explicar pra eles o que é o Grêmio Foot-ball Portoalegrense, aparecem os soldados israelenses para abrir a tal porta. Com eles, seus coletes, uniformes, capacetes e M16.

Paramos por alguns instantes para ver quantas pessoas vão passar. Contudo, notamos um certo desconforto entre as crianças: elas ficam alertas, acompanhando a movimentação dos militares (os meninos, principalmente, ficam mais agitados, enquanto as meninas se encolhem). Os israelenses, por sua vez, parecem meio surpresos com a presença de tanta gente, mas não fazem qualquer comentário.

Naquele momento entendi o que o nosso amigo de fato queria dizer.

Estabeleceu-se, ali, uma espécie de equilíbrio maldoso, em que “tudo bem” significa simplesmente “seguimos com nossas vidas”. Afinal, não há propriamente paz, pois várias casas da vila foram destruídas há alguns anos atrás e boa parte das restantes continua condenada pelo Exército Israelense pelo fato de simplesmente estarem perto demais do muro que separa os dois países. Além disso, a presença de aviões de monitoramento sobre a região parece sempre lembrar que a ocupação continua e que o som dos burricos jamais prevalecerá em Fara’un.

Subitamente me desconcentro. Um medo atroz me sobe pela espinha e pergunto ao nosso amigo se é seguro ficar com as crianças ali, tão perto dos soldados. Ele diz que não poderíamos ficar tão perto da porta, mas que nada vai acontecer. Seguimos a contagem e nossa conversa com as crianças, até o momento da porta ser fechada. Um dos meninos se levanta, e, meio emburrado, olhando em direção aos soldados, diz alguma coisa.

“Ele diz que gostaria de ir lá”, traduz o fazendeiro.

Os soldados seguem à frente para fechar a porta. Ninguém foi deixado pra lá do muro, todos puderam sair sem problemas. Estamos nos levantando quando, de repente, o menino emburrado resolve pegar uma pedra do chão. Parece que em frações de segundos uma catástrofe se abaterá, que todo aquele equilíbrio macabro pode ser quebrado por uma pedra arremessada na hora errada, no momento errado, pela pessoa errada. Tiros, reforços e outras coisas podem ser a resposta do outro lado e, a partir dali, sabe lá Deus o que mais.

O fazendeiro que nos acompanha habilmente se antecipa e abraça a criança, dizendo algumas palavras que soam bizarramente simpáticas. A criança larga a pedra e começa a rir, respondendo alguma coisa engraçada. Olho para trás, para ver a reação dos soldados, mas nada indica que eles tenham percebido o que estava prestes a acontecer. Fara’un pode respirar aliviada, pois tudo seguirá “bem”.

 

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4 de mar. de 2012

At Tayba

“Nós somos animais. Somos tratados como animais”.

Foi isso que eu ouvi de um palestino que se amontoava com outros três ou quatro para passar, ao mesmo tempo, pela primeira porta giratória do checkpoint de At Tayba, que já contava com uma fila de cerca de 200 pessoas às quatro da manhã, todas aglomeradas e na dependência da boa vontade de um funcionário qualquer, que, de uma câmera em algum lugar distante, regulava quem podia e quem não podia entrar.

 

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Eu fiquei aturdido com aquela afirmação. Me aproximei da “jaula” e tudo que consegui fazer foi balançar a cabeça e dizer “eu sei, é horrível”. Tentei engatar uma conversa naquele momento, perguntar qualquer coisa, mas a porta giratória abruptamente voltou a funcionar e o “animal” com o qual eu ia começar a falar pôde respirar um pouco e seguir para a etapa seguinte, o detector de metais.

Já ouvi muito que conflitos ou disputas devem ser apreciados com objetividade. Mortos, feridos, pessoas passando por checkpoints, crianças sendo impedidas de ir à escola, mulheres sendo revistadas por homens, tudo, se possível, deve ser convertido em número e apreciado por critérios que distanciem ao máximo o intérprete de seu objeto de estudo. É limpo, bonito e, em tese, permite ao interlocutor avaliar a mensagem transmitida da maneira que ele melhor entender. É a função denotativa da linguagem em sua forma mais acabada, pode-se dizer.

Pois bem, se querem objetividade, hoje, das quatro às sete da manhã, mais de 2500 indivíduos passaram por At Tayba; tivemos que ligar quatro vezes para a Humanitarian Hot Line (uma espécie de SAC dos checkpoints – porque aparentemente passar pela fronteira é como reclamar do iogurte estragado) para saber porque as coisas não estavam funcionando. Ligamos para uma ONG israelense para saber se eles tinham alguma notícia sobre o que havia acontecido, porque houvera uma queda substancial de passantes entre a primeira e a segunda hora de funcionamento do terminal (de 1400 para 600 pessoas, na média). Às 6h55min soubemos que a empresa privada que administra o lugar estava enfrentando problemas, mas que esses já seriam averiguados. Ao final, contamos, por alto, umas 500 pessoas na fila.

 

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Mas isso realmente não expressa nem metade do que eu experimentei hoje. O que eu vi e ouvi nessas três horas em que estive no checkpoint é impossível de mensurar com base em qualquer critério objetivo. Números não expressam o rosto e o sofrimento de ninguém, não servem para ilustrar o frio, a chuva, a lama, o lixo, o desespero e uma afirmação como “nós somos animais”. Normalizar o que aconteceu, tentando fazer uma análise sociológica, antropológica, histórica ou seja lá o que for, aceitando como parte do cotidiano ou como uma “questão de segurança” o tratamento dispensado às pessoas em At Tayba é algo que está fora das minhas capacidades.

 

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Em síntese, posso tentar fazer a análise que quiser, mas nada vai apagar a constatação de que, sim, nessas bandas, a vida e a dignidade têm pesos muito diferentes dependendo do lugar onde se nasça. Por questão de poucos quilômetros se decide quem merece e quem não merece ser tratado como ser humano.